16 fevereiro 2009

C1.1 - Viagem

Uma viagem de comboio como tantas outras que André fez ao longo da sua vida, distraia-se a ler um livro, o seu livro favorito. Uma criança particularmente irrequieta com sua avó no banco de trás observava-o. Teria dois ou três anos no máximo, já andava e volta e meia fugia à sua avó na ânsia de conhecer o mundo. Ânsia tão comum naquela idade de exploração, mas naquele momento observava André. André sentiu-o e olhou a criança de volta, não sabia o que passava na cabeça da criança, era-lhe impossível compreender por inteiro, no entanto sabia que provavelmente como rapaz de cabelo comprido que era se tornava numa raridade para aquela criança com a curiosidade no seu auge. Ao fim de breves segundos a criança cortou o olhar e voltou para a sua avó. André continuou a ler o seu livro, A Insustentável Leveza do Ser de Milan Kundera. A história de um homem e de uma mulher, que se bifurca na história da amante desse homem e um outro homem de quem ela se torna sua amante. Obviamente essa é a história, no entanto mais do que uma história esse livro era um universo de pensamentos e filosofias. Há bom livros, cuja história e a ânsia de saber o que vai acontecer, nos prende e nos obriga a ler só mais uma página até não haver mais páginas e obriga-nos a continuar no volume seguinte. Mas nesse livro ele não se sentia obrigado a ler continuamente, a história acabava por não ser nada de mais, mas cada vez que lia uma linha sentia-se a partilhar de um conhecimento acumulado pelo autor.
Volta e meia a criança voltava a observa-lo mas ele fingia que não reparava e continuava a ler o seu livro interrogando-se com que personagem ele se identificava mais. Numa paragem entrou um rapaz que se sentou alguns bancos a sua frente, André continuou sem ligar ao mundo que o rodeava, tentando entrar no universo do autor, nas atitudes das personagens e nas suas dualidades e dúvidas. Acabou um capítulo e olhou em frente. Viu o rapaz que tinha entrado na última estação e entretanto ligado o seu portátil. Reparou num Ambiente de Trabalho cheio de icons e um pensamento involuntário de superioridade correu-lhe na cabeça "Burro! Quem é que ainda não sabe que ter tantos icons no Ambiente de Trabalho torna o arranque incrivelmente mais lento!". Mas esse pensamento rapidamente se desvaneceu e tornou-se numa série de interrogações "Porque é que ele haveria de saber aquele quase pormenor? Porque é que ele haveria de querer ter o seu arranque mais rápido? Porque é que eu me senti superior a ele por saber aquilo?". A primeira pergunta era simples de responder com um "só pode saber o que sabe e se ninguém lhe disse é normal que não saiba", a segunda na sua cabeça tornava-se num "Mas quem é que não quer perder o mínimo tempo possível?", mas a terceira deixou-o de rastos num sentimento de inferioridade provocado por aquela falsa sensação de superioridade. Sentiu-se envergonhado e continuou a ler o seu livro até chegar a sua estação e sempre com aquele sentimento de inferioridade e culpa por se julgar superior sem motivos para isso.

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